Um tempo que escorre aos olhos

Posted: quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010 by Fabiano Fernandes Garcez in Marcadores: ,
0



Por Fabiano Fernandes Garcez

            Em À medida dos Tempos, livro de estréia de Clebber Bianchi, percebe-se que no decorrer da obra o poeta amadurece seu canto, amplia suas impressões e expressões, suas visões e percepções de um tempo impossível de se aprisionar, mesmo depois de capturado pelo retrato fotográfico, restando ao olhar lírico apenas a nostalgia de um tempo tardio, mesmo que recente:    
Do peito,
escorre a chama suja dos tempos.
O olhar é simples, singelo,
apenas os tempos são capazes de testemunhá-lo.
O sorriso amarelou no retrato
e a fala muda enalteceu a lembrança.
Somente o sonho sobreviveu.
E a saudade vive nas tardes,
sob as folhas das mangueiras,
a cada lágrima que cai.
           
            Clebber nos dá mosta do labor poético que preza a fenomenologia do olhar, olhar este que se volta para as coisas sem importância, coisas à toa e, por isso mesmo, são de grande valia e merecem ser recordadas:
Haverá um tempo
em que o passado estará exposto
no reflexo das cores orvalhadas
das flores do jardim da janela dos fundos.
As goteiras farão as rimas dos versos
que contarão a história.
O silêncio que havia na casa grande
havia entre os odores do curral.
O galo que há pouco cantou
propiciou reminiscências,
que os roncos dos motores e buzinas,
além do apitar cotidiano da fábrica, apagaram.

                                                                       RETRATOS

            A observação subjetiva das coisas simples, singelas, ganha um forte aliado, sua sintaxe também simples, sem afetações linguísticas de um discurso meramente formalista, que pouco comunica. O discurso poético de Clebber comunica bastante, para isso o campo léxico de À medida dos tempos é cotidiano, comum, no entanto é nessa simplicidade de dizer que é dito muito sobre a solidão, os sonhos infantis e até sobre o fato de se perder as palavras, restando apenas a contemplação sensorial do momento:     
Daqui de cima tudo é solitário.
Viver acima
é encontrar-se surdamente
falando para si mesmo.
Esta é a minha casa da árvore (sonho de criança)
financiada em duzentos e quarenta meses, além de alienada.

Quando enlouqueço e grito lá para baixo,
somente as buzinas respondem.
Em seguida, as palavras não me vêm.
Apenas o pio da andorinha,
um pio, um só.
Apenas uma andorinha,
uma andorinha apenas.
                                                                       UMA ANDORINHA
           
            Cleber vale-se de alguns recursos poéticos, apesar de sua linguagem acessível, como por exemplo, paradoxos e antíteses:
O tempo é permissivo
aos contentamentos descontentes.
Vejo que tudo acontece ao mesmo tempo agora
no cenário dos dias na cidade...
                                                                       PESARES DO TEMPO

Hoje, o tempo me veio solteiro,
em uma noite daquelas em que a melhor companhia era a
solidão.
                                                                       EU INTRA
            além disso, em alguns poemas vê-se um jogo com os diferentes valores semânticos de uma mesma palavra, como em MÁSCARA:
Um ser sem sentir-se
um sentir-se sem ser.
            porém é nas belíssimas imagens poéticas que Clebber Bianchi se mostra mais criativo:
Enquanto os sapos coaxam de sede,
O sol atravessa a pele da terra,
e meus ombros são minha camada de ozônio.
                                                                       DESALINHO

Cansei de respirar uma felicidade esbaforida,
cansada de se engasgar no soluço sórdido,
numa exatidão sem nexo e triste de alma.
(...)
Bastou-me um santo
e ajoelhei-me sobre as cinzas carbonizadas do meu consciente.
                                                                       DILATEM, PUPILAS!

            O poeta também se utiliza de alguns recursos sonoros que fazem com que os seus poemas ganhem em musicalidade e ecoem em nossos ouvidos. Um desses recursos, é o eco fonético, ou seja, aproximação de palavras semelhantes sonoramente:
Eu era um descaso do acaso,
angariado na contramão de uma grande avenida
Os brilhos dos olhos lagrimantes de saudade
de um tempo escorrido nos relógios
refletiam a esperança do passado,
apagada na realidade de um presente sério.
                                                                       TEMPO DE REZA

            Outro recurso utilizado pelo poeta é a onomatopéia:
O relógio tinha que tá, tinha que tá
mas não tá.
(esta foi a única coisa que o tempo parou!)
                                                                       MANTO NEGRO

             Clebber mostra em seus versos, não raro, a influência de Tonho França, e faz uma homenagem à altura do poeta de Guaratinguetá em CHARUTO CUBANO:
Uma lágrima seca escorreu-me de canto
e o canto do pintassilgo emudeceu na gaiola.
Minha cachaça perdeu o gosto quente,
exposta ao sol dos dias.
Mesmo uma pimenta aberta no prato
caçoava minha coragem.
Senti desconforto
e, sob meus pés,
o vácuo das manhãs sem sal provocava saudades.
É contínua a direção dos ventos,
segundo os sonhos,
seguindo sempre somente e só...

Os apoios que me sustentam
são espinhos tristes, sanções expressionistas,
cenários de Van Gogh.
Meu peito dilatado
ressalva as atitudes corriqueiras nas janelas
temperadas de línguas.

E sobre a rede ...
... e sobre a rede,
somente um legítimo charuto cubano
fazia-me companhia,
e entre um trago e outro
trago saudades.
Ao fundo,
solos de blues...
Solos de blues,
à tarde.

As acácias choravam suas perdas,
e as folhas caíam como eu,
solitariamente...

            Outro destaque do livro é OLHOS FECHADOS, poema com uma vertente ecológica e, dado aos problemas ambientais, quem sabe, profético:
A culpa é nossa!
Uma culpa com a imensidão do verso,
do céu-fumaça, estradas-pet, sertão-papel. Culpa tamanha!
O sonho é esperança contida no escorrer das águas nas sarje­tas,
nas mãos atadas dos pobres de espírito,
no papel de bala que perfurou o vento
e não pesou sobre a mente poluída.

É o início do fim. (...)

            Le Goff em História e Memória diz:
“a memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia”.
Com base nessa afirmação, só resta encerrar a resenha com os belíssimos versos de SEXO DOS TEMPOS, sem antes render as devidas congratulações ao poeta que surge à tempo:

Sou atemporal.
Minhas memórias não morrerão minhas



AS CHAVES

Posted: by Fabiano Fernandes Garcez in Marcadores:
0

Tiro do bolso as chaves
para abrir a porta
que não há mais

Volto-me para o corredor
de onde saí
tento refazer meus passos
a procura da saída

Não vejo os quartos
onde nos encontramos,
         nos amamos
as fotos que tiramos,
         nossos sorrisos

Não vejo os objetos, os quadros, os vasos
que enfeitavam a sala de estar
já não vejo nem mesmo o corredor
onde deveria estar

As chaves ...
Passo as mãos no bolso...
Não as tenho mais...

Procuro a porta
Procuro a saída
Procuro um luz no fim do túnel,
mas não encontro o interruptor,
nem uma vela

O ar ficou pesado,
sinto todo peso em meus ombros
O ar ficou pesado
Um peso do passado

Finalmente, encontro uma porta,
que deve ser minha saída
que deve fechar minha ferida
Mas ....
Não encontro as chaves




Diálogos que ainda restam p. 21