Século XVII, recepções da Bìblia: hobbes, Spinoza e Vieira

Posted: sábado, 28 de março de 2009 by O Blog dos Poetas Vivos in Marcadores: ,
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-Emmanuel G. Guimarães Lisboa-

O século XVII inclui-se na história mundial como o recheio de um sanduíche, o período que se estende de 1601 até 1700 está espremido entre o Renascimento, as grandes navegações, a reforma luterana e a contra-reforma ocorridos no século XVI e o século XVIII, marcado pelo advento do iluminismo, que apregoava o domínio da razão sobre a fé, e foi um período dominado pela burguesia que contribuiu com àquilo que o historiador Eric Hobsbawn definiu como, A Era das Revoluções, isto é a Revolução Industrial, que define os parâmetros do mundo do trabalho e prerroga o capitalismo industrializado, e a Revolução Francesa que leva ao extremo a idéia de um Estado Burguês liberal conforme já havia pensado John Locke.

Tanto o século XVI quanto o XVIII, são vistos como momentos de mudanças extremas na história mundial, mas o século XVII é tido comumente como um século de transição ou até mesmo preparação para aquilo que viria e compreensão daquilo que foi. Visão que não é exata, pois o século, aqui estudado levanta questões fundamentais do pensamento humano e solidifica uma recompreensão do mundo.
O texto que aqui se apresenta, preocupa-se, somente, com a recepção, a leitura e a compreensão da Bíblia que três autores do período teceram (Hobbes, Spinoza e Vieira) e deixa de lado, infelizmente, outros aspectos importantes desse século como: a solidificação da estética barroca, o surgimento do maneirismo, a sistematização gramatical de línguas vernáculas entre outros aspectos e fatos, até mesmo outras recepções da Bíblia como a de Cromwell ou a de Pascal.
Independentemente das intenções deste trabalho, alguns fatores não podem deixar de ser expostos para a leitura que os autores fizeram das Escrituras. Para tanto, apresenta-se um breve esboço histórico em que são presentes os três autores.

A Revolução Gloriosa, Hobbes, um pensador político além de problemas da política.

A Revolução Gloriosa, como toda revolução, foi o resultado de uma boa quantidade antecedentes. Até 1603 a Inglaterra havia sido governada por uma mulher que deixou marcas no imaginário até os nossos dias, basta observar a quantidade de produções cinematográficas acerca de Elisabeth I. Uma rainha capaz de organizar política e economicamente a Inglaterra, conquistar alguma conciliação entre Anglicanos, Católicos e Calvinistas e ainda integrar o parlamento e coincidir os interesses do governo ao dos grandes mercadores ingleses. Elibateh I, conhecida pelo povo como A Rainha Virgem, apelido oriundo muito mais de uma montagem estética livremente inspirada na iconografia mariana, do que em suas ações sexuais, não deixou herdeiros.

Com a morte da rainha o novo monarca foi Jaime I, na Inglaterra o mesmo Rei Jaime VI da Escócia, dando início à dinastia dos Stuart. Esse monarca ficou conhecido por sua adesão ao absolutismo de moldes franceses e por ser um anglicano anticatólicos, capaz de persegui-los insistentemente e também de fechar o parlamento em nome de seu poder único e absoluto. De fato o parlamento foi fechado, e os católicos se não perseguidos, foram aos poucos destituídos de seu papel político e social, da mesma forma que os anglicanos.
Um parlamento fechado por sete anos e um desenvolvimento mercantil que prejudicou a burguesia manufatureira foi o saldo do reinado de Jaime I, quando subiu ao trono seu filho Carlos I sucedido por Jaime II, seu irmão. Com o reinado de Carlos I a tensão iniciada com o pai, Jaime I, se acentuou, eclode, então o chamado Período da Grande Rebelião que se caracteriza pelo conflito entre parlamento e rei, tal conflito resulta num confronto armado com forte participação popular, e uma guerra civil que estende por seis anos, 1642-1648 e resulta na execução pública de Carlos I.
A partir da morte de Carlos I, o poder que deveria ir para seu irmão passa para as mãos de Oliver Cromwell, que redefine o parlamento, institui o poder marítimo inglês e reprime uma revolta católica na Irlanda. O período de Cromwell, marca a definição da monarquia parlamentarista inglesa, que seria novamente arranhada pelo breve reinado de Jaime II, este assumiu o trono como rei, mas concentrou suas forças numa guerra contra a Holanda por poder marítimo. Quando Jaime II tentou reavivar os ideais absolutistas de sua família foi rapidamente expulso e terminou seus dias na França enquanto a Inglaterra passou a ser governada por Guilherme de Orange com uma política em favor da burguesia e dos ideais liberais[1].
Em meio a esse caos da revolução e alheio a ele, está Thomas Hobbes, nascido na Inglaterra em 1588 e falecido no mesmo país em 1679. Numa viagem pelo continente travou contato com os avanços físicos e matemáticos de franceses e italianos, fator que contribuiu para a montagem de um sistema filosófico materialista que professava um mecanicismo rigoroso e liga toda a ação a uma reação. Outro ponto fundamental para a teoria política de Hobbes é seu contato com a obra: O Príncipe do italiano, Nicolau Maquiavel. Ambos defendem o poder absoluto aos governantes, chamados de príncipes, contudo Maquiavel aponta o como chegar a esse poder e Hobbes por sua vez aponta para a necessidade desse poder.
Para Hobbes o homem é movido pelo desejo e pelo temor, nesse sentido o poder serviria praticamente para regular uma necessidade humana. Sua obra mais importante e onde esse sistema é exposto e explicado é O Leviatã, livro com um título que esta além do simbólico e faz uma alusão, quase que vocativa ao monstro bíblico presente no livro de Jó e apresentado por Deus (Jó, 40,15-32 e 41, 1-26).
O monstro Leviatã é já no texto bíblico descrito como o prórpio temor, transformado no Livro de Jó na própria adjetivação daquilo que foi criado por Deus para mostrar ao homem quão pequeno ele é, o Deus de Jó, conclui sua descrição do Leviatã como aquele que:

Deixa atrás de si um rastro de luz. O abismo parece coberto por branco véu. Sobre a terra não há quem domine. Intrépido assim ele foi feito. Capaz de enfrentar qualquer colosso ele é o rei das feras todas
[2].


Na filosofia de Thomas Hobbes a palavra liberdade só é possível em certa medida, pois por um processo argumentativo dedutivo baseado na Bíblia clarifica-se o fato de que o homem jamais foi feliz, opondo-se claramente à visão medieval, e postulando a necessidade de alguém que regule o homem. Todavia a liberdade possível para Hobbes, é a liberdade natural, ou direito natural. Este é o direito que todo homem tem de lutar por sua sobrevivência, porém se este não for regulado por alguém viveremos numa barbárie. E quem regularia? O governante que é detentor de um poder absoluto, atribuído por Deus. Mais adiante a utilização da Bíblia será revista na filosofia política de Thomas Hobbes.

Portugal, Espanha e Holanda um teatro com o Brasil como palco.

Enquanto a Inglaterra brigava internamente, Portugal, Espanha e Holanda também tinham seu embate. Este problema é tão importante para o Padre António Vieira quanto para Baruc Spinoza. O Brasil era território português desde a descoberta em 1500, a colonização extrativista se consolidou ao longo do século XVI e durante o século XVII mudou seu foco para o plantio e colheita da cana-de-açúcar, isto sem deixar de ser extrativista. A produção canavieira, trouxe consigo incontáveis escravos africanos e criou uma elite açucareira formada pelos senhores de engenho, que dominavam as lavouras de açúcar.
O melado de cana produzido no nordeste brasileiro era transportado e manufaturado em sua grande parte por holandeses, detentores de tecnologia naval e alimentícia. Dessa forma, a equação é simples: o açúcar é plantado em terras portuguesas, colhido por africanos, transportado por holandeses e vendido para toda a Europa. O lucro era dividido em duas partes, os lusos ficavam com uma e os holandeses com a outra.
No século XVII Portugal já não era mais o mesmo. Todo o poder ultramarino e comercial dos séculos XV e XVI estava se esvaindo junto com a idéia de soberania. Sobretudo após a morte ou desaparecimento do Rei Dom Sebastião em Alcácer-Quibir, como o rei não deixou herdeiros o trono passou para seu tio Cardeal Dom Henrique, o inquisidor mor de Portugal, o governo do cardeal, já idoso, durou dois anos, assim em 1580, Portugal, passa a ser domínio espanhol, devido a um pequeno grau de parentesco entre Dom Sebastião e Filipi II de Espanha. O século XVI pode ser visto como um dos piores séculos para os portugueses que o iniciaram como uma das maiores potências mundiais e terminaram como terra sem rei dominada por um estrangeiro.
Para completar a história lusitana os holandeses estavam descontentes com a divisão dos lucros, ainda mais com uma coroa que nem mais existia. Decidiram invadir o nordeste brasileiro para retirar a matéria-prima diretamente do lugar de extração, e assim ampliar seus lucros, pois de transportadores e fabricantes de açúcar passariam, também, a produtores.
Em 1624 é feita a primeira tentativa de dominar o litoral brasileiro, via Bahia, ao longo de um ano tropas portuguesas combateram holandesas até expulsa-los do litoral baiano. Mas cinco anos depois, em 1630, a Holanda toma facilmente a região de Pernambuco e por lá permanece até 1631.
A síntese para Portugal é no mínimo triste, sem rei, com o lucro diminuído, perde uma das principais bases econômicas de sua colônia mais importante.
Vieira e Espinosa se inserem nesse contexto. A ligação de Vieira, padre jesuíta de importância política e eclesial no Brasil, com a ocupação holandesa é bastante direta. Durante boa parte da ocupação em Pernambuco Vieira estava no Brasil e pregava em favor dos portugueses
[3].
Baruch Espinosa, por sua vez tem uma ligação mais indireta, com a ocupação holandesa no litoral brasileiro. Nascido na Holanda em 1632, dois anos após a ocupação, é filho de portugueses que se mudaram devido à abertura para imigrantes e permissão de livre culto judeu, concedida por um governo holandês mercantil e calvinista interessado no poderio comercial judaico.

O Estado Cristão, a Bíblia como atestado do poder monárquico.

O Leviatã, teve sua primeira edição em 1651, foi escrito em duas línguas: Latim e Inglês. Obra dividida em três partes sendo as duas primeiras focadas numa busca da natureza teológica na qual o homem tem certa predisposição ao crime e por isso necessita de alguém que o governe. Essa predisposição seria oriunda de Deus, não que Deus desejasse o homem criminoso, mas Deus tudo pode, até mesmo se autocontradizer, fez, então, o homem livre e como livre este pendeu para o mal. Dessa forma Deus também criou o governante para que regulasse o homem.
O Leviatã enquanto animal bíblico, para Hobbes, simboliza o governante. Nesse sentido o animal que tudo vê e tudo sabe tem medo de algo, esse algo é Deus. Da mesma maneira é o governante que também só teme a Deus.
Parte importante deste livro no presente artigo é a terceira, Do estado cristão. Pois, nessa parte Hobbes atesta e expõe como seria o Estado Cristão. Primeiro ponto para a leitura é a idéia de que a Instituição Monárquica Judaica é metonímia da organização do Estado Cristão. Assim, para Tomas Hobbes, é preciso consultar a Bíblia e compreende-la noutro contexto para aplicá-la a realidade presente.
Nessa terceira parte não seria mais possível que Deus enviasse milagres, ou profetas para levar sua vontade aos homens, pois já havia deixado sua palavra que deveria ser compreendida. No capítulo XXXII nos é colocada a noção de que os profetas são finitos o que é infinita é a Escritura, e para sua interpretação

...não convém renunciar aos sentidos e à experiência, tampouco àquilo que é a palavra indubitável de Deus, nossa razão natural. Foram esses, pois, os talentos que ele pôs em nossas mãos para vivermos, até o retorno de nosso abençoado Salvador.
[4]

Portanto, Deus legou ao homem a capacidade de compreender por meio dos sentidos e da experiência que resultariam na razão, até o momento da chegada do Salvador. Como a compreensão se dá via sentido
[5] ela não poderia ser lógica. A partir desse ponto do texto, Hobbes busca não confundir uma compreensão não lógica com qualquer compreensão, para tanto utiliza o sonho como antônimo do extra-natural. Nesse jogo Deus seria o extra-natural e o sonho o natural, o natural é o pensamento humano e extra-natural, por sua vez, é a vontade de Deus passiva de compreensão. Nesse raciocínio quando um homem sonha que Deus falou com ele, na verdade é apenas sonho, e não profecia. Para haver profetas é fundamental que existam dois sinais, em conjunto.
Os milagres, também, não mais seriam possíveis, visto que estes são imediatos e não podem ser adiados por muito tempo. Sem profetas e sem milagres, na atualidade (Inglaterra do século XVII)

...não se produzem mais milagres, não resta qualquer sinal que permita reconhecer as pretensas revelações ou inspirações de qualquer indivíduo. Não há também obrigação alguma em dar ouvidos a qualquer doutrina, para além do que é de acordo com as Sagradas Escrituras, que desde o tempo de nosso Salvador substituem e suficientemente compensam a falta de qualquer outra profecia, e a partir das quais, mediante sábia e boa interpretação e cuidadoso raciocínio, podem facilmente ser deduzidos todos os preceitos e regras necessárias para conhecer nosso dever, para com Deus e para com os homens, sem entusiasmo ou inspiração sobrenatural
[6].

Fica claro na passagem transcrita que para Hobbes é fundamental uma compreensão racional da Bíblia e para tanto é fundamental que a razão se ajuste a Bíblia.
No capítulo XXXIII d’O Leviatã é feita uma análise via crítica interna da Escritura e o eixo central da discussão desse capítulo gira entorno da autoria do texto Bíblico. Hobbes volta-se ao Pentateuco e sobre ele assevera:

... o Pentateuco não constitui argumento suficiente para afirmar que foi escrito por Moisés simplesmente pelo fato de ser conhecido como os cinco livros de Moisés. (...) No último capítulo do Deuteronômio, vers. 6, a respeito do sepulcro de Moisés, lemos, que ninguém conhecia seu sepulcro até aquele dia, quer dizer, até o dia em que aquelas palavras foram escritas. É assentado que essas palavras foram escritas após seu funeral.
[7]

Nessa passagem, Hobbes não busca colocar em xeque a religião, ou o valor da escritura. Mas sim, busca justificar que a Bíblia é o argumento próprio e excelente para a instauração do Reino de Deus. Assim, a Bíblia é o próprio atestado de que Deus quer que o homem seja regulado por um governante.
Como os Livros do Antigo Testamento não foram escritos pelos autores aos quais são atribuídos, e uma parte dos do Novo Testamento estão na mesma condição é Deus quem inspira o autor. Inspirando o autor, inspira também o destinatário, isto é o interprete bem preparado, o resultado é uma inspiração direta, mediante uma interpretação sábia e correta, configurando-se, portanto numa inspiração ética.
O capítulo XXXV da parte três disserta acerca do Reino de Deus. Esse reino não seria conforme o da teologia inglesa da época. Esta visava um reino espiritual, possível no pós-morte. Para Hobbes é um reino possível na Terra. Seria este o reino de um Rei retornado, Jesus Cristo. De acordo com Hobbes como Jesus esteve na Terra, o reino de Deus é na Terra e assim o rei terreno é quem é atestado por Deus para guiar o homem em detrimento do poder papal. Com tal raciocínio os reis tornam-se santos, as coisas públicas também e o homem também. Assim, muito mais do que uma leitura meramente política é a obra do inglês Tomas Hobbes passiva de uma leitura teológica guiando-nos por um caminho onde Política e Religião tenham uma possível relação.


Um subversivo nos aconselha a ler a Bíblia.

O judeu, Baruch Espinosa foi em suas idéias e para o seu tempo um subversivo. Para muitos, durante muito tempo ser chamado de espinosista era o mesmo que ser chamado de ateu. Em sua obra Espinosa debruçou-se sobre sua própria tradição e buscou compreende-la sobre outras matrizes. Assim, para o filósofo, Deus não seria um ser transcendente, externo, onipresente e com morada nos céus, descreveu um Deus substancial e indivisível do qual todo homem faz parte. Aqui não pretendemos analisar os parâmetros da definição de Espinosa sobre Deus, mas sim compreender o método pelo qual este autor lê a Bíblia, aconselha-nos a ler e em certa pedida prevê um modelo de leitura instituído apenas séculos mais tarde. Para tanto nosso comentário se limita aos capítulos de VII a XV do Tratado Teológico-Político.
Apesar de Espinosa manter certa relação com Hobbes em alguns pontos de seu texto para o holandês a Bíblia não contempla um modelo uno de estado e isso só poderia ser percebido se feita uma leitura competente do texto. Uma leitura bem feita lembra que o texto expressa o pensamento de seu autor, no momento histórico em que ele viveu e com o idioma que ele falava. Dessa forma um autor só fala daquilo que conhece, de onde vê e com os argumentos que lhe são possíveis.
Ao perceber tais fatores Epinosa define três padrões para uma leitura competente da Bíblia. Estes padrões são: o gramatical, o estrutural e o histórico.
O fator gramatical foca-se no estudo e utilização das línguas originais em que foram escritos os livros da Bíblia. A língua de excelência é o hebraico, relevante devido aos nuances entre as traduções, também nos deslizes inerentes à leitura e o fato de que necessariamente aquilo que é expresso numa língua não necessariamente é expresso em outra. Sobre a importância e predileção pelo estudo do hebraico nos diz:

...a história da língua hebraica é necessária para se compreenderem, não só os livros do primeiro (Testamento), que foram escritos nessa língua, mas também os do segundo, os quais, embora tenham sido divulgados em outros idiomas, trazem no entanto hebraísmos
[8].

Por essa proposição a compreensão correta é advinda do maior domínio da língua original. Essa compreensão sofre importantes contribuições do segundo ponto levantado no Tratado, a abordagem estrutural. Nela não se deve confundir verdade com sentido, pois,

... uma opinião é clara ou obscura conforme a facilidade ou dificuldade com que se apreende a sua verdade pela razão. Trata-se aqui apenas do sentido e não da verdade dos textos
[9].


Da mesma forma que aparece em Hobbes a verdade do texto aparece em Espinosa, essa verdade adveêm da razão. Assim, a verdade das coisas existe, mas o verdadeiro sentido precisa ser apreendido.

Para não confundirmos o verdadeiro sentido com a verdade das coisas, deveremos examiná-lo com base unicamente na norma lingüística ou num raciocínio que tenha por único fundamento da Escritura
[10].

Na reflexão teológica de Espinosa a Bíblia precisa ser entendida. Seu entendimento fundado na gramática e na estrutura precisa se fundado sobre o momento histórico, no tocante a recepção e transmissão contextual do texto. Tanto recepção quanto transmissão ligam-se diretamente ao autor. A necessidade então para o entendimento exato da Bíblia é uma história da Escritura.

Por último a história da Escritura deve descrever os pormenores de todos os livros dos profetas de que chegou notícia até nós, ou seja, a vida, os costumes, os estudos de cada um dos autores, quem era ele, em que ocasião, em que época, para quem e, finalmente, em que língua escrevia. Depois as voltas que deu cada livro: como foi originalmente acolhido, em que mãos foi parar, quantas versões conheceu, a conselho de quem foi incluído entre os Livros Sagrado e, enfim, de que modo foram reunidos num único corpo todos os livros já universalmente reconhecidos como sagrados
[11].

Mesmo criando e expondo seu método de leitura, Espinosa mostra problemas na aplicação. O primeiro ponto do método é adverso, pois há muito pouco sobre a língua hebraica, suas aplicações e seu uso cotidiano, assim

...não chegou absolutamente nada (do hebraico) nem um Dicionário, nem uma Gramática, nem um Retórica,. A nação hebraica perdeu todas as suas glórias e pergaminhos (o que não admira, depois de ter sofrido tantos desastres e perseguições) e não conservou senão alguns fragmentos da sua língua e da sua literatura
[12].

Ainda são levantados problemas na conjugação verbal e na fonética do idioma. A questão acerca do primeiro ponto vai ao encontro com o terceiro. Pois, a história da Escritura é difícil de ser tecida porque são escassos ou nulos os registros biográficos e históricos dos autores e leitores. A partir da leitura de Espinosa é possível dizer que é falta uma leitura crítica do texto, insere-se comumente, o autor da Escritura, de uma aura quiçá santificada. Para tanto é importante retomar a análise comparativa feita por Espinosa a respeito dos livros: Orlando Furioso, Ovídio, Juízes e Reis, sobre essa comparação o filósofo se expressa

Todas essas histórias são muito parecidas e, no entanto fazemos de cada uma delas uma idéia bem diferente: o primeiro autor pretende escrever apenas frivolidades; o segundo, fatos políticos; o terceiro, finalmente coisas sagradas. E o único motivo que nos leva a pensar assim é a opinião que temos dos respectivos autores
[13].

Nesse sentido dois dos parâmetros definidos para a compreensão da Escritura são de difícil aplicação e aquele que apresenta um uso mais pertinente é o segundo, aquele que visa à busca de um sentido racional da Bíblia. Por essa via não seria abandonado o conhecimento da língua nem a história da Escritura, ambas figurariam como aporte para a leitura do texto.
Os demais capítulos da segunda parte do Tratado Teológico-Político buscam atestar esse método, seja nas Cartas dos Apóstolos, seja no Pentateuco, ou ainda em Josué. Esse miolo do livro dá continuidade a idéia dos seis primeiros capítulos, exposição dos ensinamentos da Escritura, e solidifica a questão a ser discutida nos últimos cinco, como buscar um modelo de estado na Bíblia se ela não contempla um modelo uno.
Pode-se, portanto dizer que os capítulos VII a XV de Tratado Teológico-Político visam entender criticamente a Bíblia no intuito de buscar nela proposições pertinentes para um modelo de leitura política. Ao buscar um modelo e não simplesmente aceitá-lo subverte, e institui uma maneira outra de compreender os desígnios sagrados.

Vieira, um articulador que glosa com a Bíblia.

Se Tomas Hobbes definiu um parâmetro político a partir da Bíblia e Espinosa buscou compreender a política a partir das Escrituras, é Padre António Vieira quem faz política, tendo o Antigo e Novo Testamento como base retórica. Muito embora, em Vieira, a Bíblia torna-se fundamento para sua teologia, seu messianismo e seu milenarismo que até hoje ecoam no Brasil e em Portugal.

Vieira passou a vida entre Portugal e Brasil, já desde seu nascimento, pregando tanto na Igreja de São Luís no Maranhão, quanto na Capela Real em Lisboa, seus Sermões transcritos e editados superam, em muito, a marca de dez tomos, isto sem contar sua correspondência. A obra teológica e profética do jesuíta expõe-se sobretudo nos volumes Esperanças de Portugal, Quinto Império do Mundo – História do Futuro e Apologia das Coisas Profetizadas. No presente artigo comenta-se o escrito que permite a classificação em “jurídico”, trata-se da Defesa Perante o Tribunal do Santo Ofício. Mas antes de discutirmos a obra é importante passarmos um pouco pelo pensamento de Vieira e as motivações da autoria de tal obra.
No ano de 1656 faleceu Dom João IV, o primeiro rei depois do período filipino, responsável pela reestruturação do Estado lusitano e protetor de Vieira frente a Roma. O Vaticano, por sua vez e devido a certa influência dominicana, há bastante tempo desejava notificar o padre português, por suas idéias e pregações. Com a morte do monarca, a ascensão de Dom Afonso IV e o surgimento da obra Esperanças de Portugal, Quinto Império do Mundo,Primeira e Segunda Vidas de El-Rei Dom João IV, a notificação de Vieira foi possível.
O motivo da citação de Vieira foi sua idéia de Quinto Império, previsão milenarista de cunho sabastianista. De acordo com essa idéia o Rei Dom Sebastião retornaria na figura de Dom João IV em sua segunda vida. Esse Quinto Império esta embasado em dois pontos: uma interpretação do livro de Daniel e a crença portuguesa no retorno do rei desaparecido na batalha de Alcácer-Quibir.
No livro de Daniel capítulo 2 versículos de 31 a 44, o rei Nabucodonosor que estava em busca de alguém capaz de interpretar seu sonho apresenta sua visão onírica a Daniel, um profeta judeu. Esse sonho consistia na contemplação de uma estátua composta por uma cabeça de ouro, peito e membros superiores de prata, púbis e coxas de bronze, pernas de ferro e pés de um misto de ferro com barro; a estátua era contemplada pelo rei quando de um súbito, caída dos céus, uma pedra de enorme tamanho destrói a estátua. Ao profeta, na narrativa bíblica, cabia compreender o que significava tal sonho, compreende, então, a cabeça de ouro como símbolo do reino vigente (Nabucodonosor), o tórax e braços em prata como um reino sucessor e inferior, as coxas em bronze como um reino que sucederia o de prata e dominaria toda a terra, os membros de ferro como um reino capaz de triturar todos os outros e resultaria num reino onde haveria desencontro e desunião com a mistura ao barro; e por fim o reino que teria poder eterno e instauraria o definitivo e indivisível, tempo de Deus na terra.
A tradição entende o ouro como a Babilônia, a prata como os Medos, o bronze como a Pérsia e o ferro misturado ao barro com a Grécia, e por fim o reino de Deus instaurado pela pedra que tudo destruiu e seria, nessa tradição, a Igreja Católica, o próprio reino de Deus na Terra. A interpretação de Vieira no Esperanças de Portugal, Quinto Império do Mundo,Primeira e Segunda Vidas de El-Rei Dom João IV, difere da tradicional.
Para Vieira o quinto império ainda não havia chegado, pois para que esse reino se instaurasse era fundamental que o rei retornasse e que se descobrisse um quinto mundo (eram quatro os conhecidos: Europa, Ásia e África – Velho Mundo e América –Novo Mundo). O rei Desejado era Sebastião, porém este não viria na figura humana conhecida, viria sim na presença de Dom João IV. Assim , a segunda vida de Dom João IV é a vinda de Dom Sebastião, e por conseguinte a instituição de um reino eterno, indivisível e definitivo, o reino de Portugal. Outro ponto relevante da teologia de Vieira é a trindade, para ele a trindade não é formada por três pessoas, mas sim por quatro. Dessa forma Deus seria: Pai, Filho, Espírito Santo e Mãe, representada por Maria.
O pensamento, tanto na obra teológica, sermonista e “jurídica” de Vieira é exposto pelo jogo, pela paródia e pela sintaxe elaborada. Garantindo a dubiedade e o paradoxo do Barroco. Um bom exemplo desse estilo é a proposição do Sermão do Bom Ladrão, ou da Audácia, pregado na Igreja da Misericórdia em 1655, vinte anos antes da defesa.
...se lembrem de não só levar os ladrões ao Paraíso, senão de os levar consigo: Mecum. Nem os reis podem ir ao Paraíso sem levar consigo os ladrões, nem os ladrões podem ir ao inferno sem levar consigo os Reis. Isto é o que hei de pregar
[14].

Neste sermão, que aqui é lembrado como exemplo, é exposto, a partir da passagem em que Cristo perdoa um dos ladrões crucificados com ele, a importância de um rei não permitir a ladroagem em seu reino. Durante todo o texto Vieira, nos deixa a dúvida quem é o ladrão? O rei?, ou o ladrão mesmo?. É nesse tom de incerteza na linguagem e certeza no tema que a obra de Vieira toca, e contribui para sua levada aos tribunais do Santo Ofício.
Em 1665 a situação de Padre António Vieira e Vaticano fica insustentável e ele é preso. Nos dois anos de cárcere
[15] não teve direito a nenhum livro e preparou sua defesa de próprio punho.
O texto de defesa na representação segunda de Vieira é escrito de uma forma em que, no próprio texto levantam-se treze perguntas cada qual com sua objeção e resposta. Na tessitura apresentam-se autores clássicos (Tomaz de Aquino e Agostinho) e a própria Escritura, citados, conforme a crítica especializada, de memória. Nessa defesa Vieira não nega sua idéia de um Quinto império e mostra aos inquisidores a importância do mesmo, principalmente em meio à contra-reforma, a necessidade de conversão dos gentios e a sempre eminente presença muçulmana.

Consiste a differença & perfeição deste estado consumado da Igreja, em que todo o mundo se converterá christão; em que todos os Christãos pella mayor parte serão muy observantes da ley divina; em que todos os principes & naçoens viveram em paz segura, cassando totalmente as armas & as guerras; & em que neste felice tempo, sendo mais copiosa a graça, se encherá o numero dos predestinados em todas as gentes; & este será finalmente o que com toda a propriedade se chamará Reyno & Império de Christo, por ser então o mesmo Christo o que só reynara em todo o Mundo, sendo conhecido, adorado & obedecido de todos
[16].

Ao longo de sua articulação Vieira retorna à Bíblia inúmeras vezes para comprovar aquilo que diz. Deixa claro que sua interpretação da Bíblia é capaz de levar a mundo que seja integralmente cristão, e isso de acordo com o próprio Vieira esta já na Bíblia: estudando o já estudado, & escrvendo o já escrito, &e tomando a agua dos regatos, por se não cansarem de ir buscar à fonte
[17]. A fonte da articulação política de Vieira é a Bíblia, estudada e analisada profundamente a fim de fazer mote a sua glosa. Na sua escrita é o texto sagrado que contém já sua previsão, esta portanto não é errada.
Nas partes três a cinco de sua defesa, Vieira comprova que o Império de Deus é na terra,pois, o Ceo não he lugar de servir & obedecer, senão de gozar & reynar, & de descansar no premio do que se tem obedecido & servido[18]. O reino de Deus, também teria de ser na terra, a reflexão, nesse ponto, muito se encontra com a de Hobbes, pois todos os reis são escolhidos por Deus, e por conta da instituição do império: ...os Reys obedecerão & servirão ao dito Imperio[19].
Todavia, Vieira deixa o Império previsto para um futuro, não tão próximo, mas de Cristo. Este império completo & consumado de Christo absolutamente futuro
[20]. Conclui, sua defesa, tomando uma base figurativa em que Isaias prefigura a Carta de Paulo aos Hebreus, e esta, por sua vez remete ao Quinto Império de Portugal. Nesse ínterim, Vieira atesta ao Vaticano que sua interpretação da Bíblia em nada desabonaria a fé católica, mas sim a atestaria.
Fato importante de assinalar é que, mesmo não desacordando com a fé católica, o Padre português foi condenado ao voto de silêncio que durou até o pontificado de Clemente X iniciado em 1670, este papa isentou Vieira de culpa “para todo o sempre” e proferiu a famosa frase: “Devemos dar graças a Deus por esse homem ser católico”. Padre António Vieira terminou seus dias na Bahia, e até o fim escreveu e buscou uma compreensão da Bíblia.

Conclusão
Em Hobbes, em Espinosa e em Vieira se vê uma busca incessante de compreensão da Bíblia como contribuidora, e porque não solidificadora de um momento político em que se revia o exercício, a função e a feitura do poder. A diferença entre os três é que para Hobbes é com a Escritura que se atesta o poder, para Espinosa com ela se compreende e em Vieira Ela é o poder.

[1] Para esse esboço histórico da Revolução Gloriosa dependemos intrissecamente dos livros: BURGEES, Anthony. A Literatura Inglesa. Ed. Ática- São Paulo.pp. 111-143/ TOTA, Antonio Pedro; LIMA, Lizânias de Sousa. História da civilização ocidental. Ed. FTD-2005. pp. 236-241.

[2] A Bíblia TEB (tradução ecumênica brasileira). 7°. Impressão. Tradução: Gabriel C. Galache et alli. São Paulo: Loyola/ Paulinas, 1995. p. 810.

[3] Conferir: Sermão Pelo Bonsucesso da Armas de Portugal contra as da Holanda no litoral do Brasil. De Padre António Vieira. Ed.: edelbra 1998.
[4] HOBBES, Tomas. Leviatã. São Paulo: Martin Claret, 2002. p. 269
[5] Sentido aqui compreendido conforme na área de estudo da estética. Conferir ainda Hobbes, Tomas. Leviatã. P. 271.
[6] HOBBES, Tomas. O Leviatã. São Paulo: Martin Claret, 2002 p. 273
[7] HOBBES, Tomas. O Leviatã. São Paulo: Martin Claret, 2002 p. 275
[8] ESPINOSA, Baruch. Tratado Teológico-Político. São Paulo: Martins, 2003. p. 116.
[9] ESPINOSA, Baruch. Tratado Teológico-Político. São Paulo: Martins, 2003. p. 118
[10]ESPINOSA, Baruch. Tratado Teológico-Político. São Paulo: Martins, 2003. p. 118
[11] ESPINOSA,Baruch. Tratado Teológico-Político. São Paulo: Martins, 2003. p. 119
[12] ESPINOSA, Baruch. Tratado Teológic- Político. São Paulo: Martins, 2003. p. 125
[13] ESPINOSA,Baruch. Tratado Teológico-Político. São Paulo: Martins, 2003. p. 129
[14] VIEIRA, Antonio. Sermão do bom ladrão, ou da audácia. p. 112.
[15] O tempo no cárcere de Vieira não é claro, das obras consultadas Janice Theodoro em América Barroca coloca sua liberação em 1675, e Antonio José Saraiva data em 1667, como é sabido que em 1669 Vieira conhece a rainha Cristina da Suécia adota-se neste ensaio a referência, neste momento, de Saraiva.
[16] VIEIRA, António. Defesa perante o santo ofício, representação segunda. p. 222.
[17] VIEIRA, António. Defesa perante o santo ofício, representação segunda. p. 227.
[18] VIEIRA, António. Defesa perante o santo ofício, representação segunda. p. 259.
[19] VIEIRA, António. Defesa perante o santo ofício, representação segunda. p. 259.
[20] VIEIRA, António. Defesa perante o santo ofício, representação segunda. p. 272.